sábado, 26 de julho de 2008

Consulta


Entrou no consultório e cumprimentou-me com um informalismo a que não estou habituado nas minhas consultas, segurando-me longamente a mão direita e dando-me, com a mão esquerda, uma pancada no ombro. Disse-me o seu nome, Portugal, explicou-me ser europeu apesar da sua tradição na relação com África e América do Sul, heranças do colonialismo, como me contou em conversa preliminar antes da nossa consulta. Disse-me também estar pouco habituado a estas modernices da psicologia, mas que vinha recomendado por um amigo, também europeu, que lhe contara maravilhas dos resultados destas conversas. Interrompeu para dizer que, ainda assim, desconfiava destes resultados, até porque este seu amigo o havia traído várias vezes há algum tempo atrás. Falou-me da restauração da independência no século XVII como o fim destas traições cobardes, e das mais recentes multinacionais que inundam os seus mercados. Ouvia-o cada vez mais longe e de forma embrulhada, enquanto se repetia e perdia em pormenores, acenei-lhe a medo pois tinha feito uma pausa e continuou, poupando-me ao embaraço.
Resolvi insistir que se recostasse na poltrona para que falássemos mais seriamente. Sentou-se então, definindo uma curva entre Sines e Évora onde se dobrava no cadeirão, a ponta de Sagres assentava no chão enquanto o cabo Espichel e Peniche pendiam fora da cadeira, como pendiam as ilhas, parasitando o restante território, fossem ilhas relativamente longínquas, como os Açores e a Madeira, fossem ilhéus próximos como as Berlengas, a Armona e o Farol. Acima na cadeira, o Minho e Trás-os-Montes não encontravam apoio de cabeça, deslizando para trás.
Começou a falar novamente, pedi-lhe que começasse pelo princípio para conseguir compreender quais os seus padecimentos, além da desordem discursiva, claro.
Falou-me dos descobrimentos, que havia sido durante séculos uma nação imperial, vá lá acreditar-se. Falou-me das cortes, dos reis absolutos e liberais, das conquistas e dos fracassos no Norte de África, para deter-se longamente sobre a ditadura mais recente, que dizia, pesadamente, continuar a limitá-lo até hoje, dizia, já com a voz embargada, ter-lhe tirado a criatividade e o fulgor de uma forma irrecuperável. Lançou-se depois, bruscamente para tempos mais próximos, para as fábricas que fecham, para as crianças que não nascem, para os rendimentos que não crescem. Rematou mais tarde com uma pergunta: - Sr. Doutor, estou deprimido, não estou? Não respondi de imediato, mas pensei que estes sintomas se enquadravam mais num quadro clínico de hipocondria, misturado com algum saudosismo evitável. Peguei num frasco de placebos, que tenho sempre à mão, e disse: - Não se preocupe, tome estes comprimidos duas vezes por dia e marque nova consulta daqui a dois meses para que conversemos melhor. Levantou-se, erguendo-se sobre o Algarve, e cumprimentou-me de uma forma mais fria do que esperava, como que desapontado por não ter concordado com o seu diagnóstico, saiu, bateu a porta para não mais voltar…


Teófilo, após pesados fracassos na psicanálise de seres humanos, e depois de ter constatado a feroz concorrência existente na psiquiatria canina, dedica-se a atender países nos seus padecimentos psicológicos. São-lhe imputados os milagres Japonês e Alemão após a 2ª grande guerra, e terá feito parte do grupo de trabalho que resolveu a “Doença” Holandesa nos anos 70.

Um comentário:

Alien Taco disse...

Talvez Teófilo não tivesse grande noção da enfermidade.Se calhar não ouviu fado. Ou quiçá tenha analisado primeiro a Irlanda e a Finlandia. Depois de riverdance e tango(que por incrivel
que pareça é canção nacional dos finlandeses)se ouvisse dois ou tres fados bem cantados ficaria com a noção de saudade, que não é mais do que a expressão duma época onde as pessoas eram tão felizes que lhes apetecia chorar.Mas com tempo talvez (convém nunca desesperar) o fado possa voltar á sua proto condição:fazer pessoas felizes chorar.Se tivessemos isso podiamos exportar em massa a nossa aptidão natural pelo drama para culturas mais equilibradas onde o excesso de riso precisa de se converter em choro para não degenerar em tédio(um mau elemento e que ataca principalmente os melhores mercados.E pronto, vendia-mos o fado e a purga aos ricos países. Brandão, óptimo texto e grande personagem o Teófilo.