quinta-feira, 24 de julho de 2008

Chá das quatro

Pouco a pouco fora desistindo de muitas coisas que antes fazia.
Deixara de ir fazer compras ao centro da cidade. Os transportes públicos sempre cheios de pessoas de rostos fechados e impacientes e jovens desrespeitosos pareciam-lhe muito pouco seguros. Tivera sorte naquela última vez em que caíra por aquela senhora a ter ajudado. Ajudara-a a levantar-se e acompanhara-a a casa.Via-se que era uma senhora com educação. Depois com a atrapalhação não guardara dela nenhum dado, nem o nome, e não lhe pudera agradecer.
Só tivera uma entorse, mas ficara sempre mais fraca daquela perna.
Dependia mais do telefone. Da mercearia traziam-lhe o que encomendava. Não tão bem escolhido, é verdade, mas não podia ser exigente.
O que ainda continuava a manter, era o lanche de sábado com as suas velhas amigas.
Antes eram cinco, mas a Mimi tivera um ataque que a deixara para sempre de cama, até se ir de vez, há dois anos.
Fora visitá-la algumas vezes. Tinha um olhar parado e não parecia estar ali. Do lado esquerdo da boca, mal fechada, saía-lhe um fio de saliva que a filha de vez em quando limpava, enquanto comentava: "hoje ela está melhor e ficou contente por a ver". Não sabia se o dizia por si ou por ela própria. No dia do funeral parecia sobretudo cansada e com os pesâmes quase todos lhe diziam "agora a mãezinha descansou finalmente, não sofre mais". Descansaram a mãe e a filha. Depois de dois anos assim e logo a Mimi que era tão animada.
Tinham ficado as quatro, mas nem sempre vinham todas ao lanche. Chegavam pelas dezasseis, com passos curtos e fatos finos, como já não se fazem. Sentavam-se na mesa do canto à janela. A sua mesa. Se estava ocupada escolhiam a mesa mais próxima, aborrecidas com aquela contrariedade até a esquecerem com a conversa. Ocupavam os lugares pela mesma ordem, deixando vagas as cadeiras das que faltavam. Pediam chá, escolhiam bolos, punham a conversa em dia e criticavam os novos tempos. Naquelas horas voltavam a ser elas, já não senhoras idosas, mas as raparigas da mesma idade, na segurança do que conheciam umas das outras, mais confiantes numa ordem do mundo.
.
Scrabble, Julho de 2007
.
.
Scrabble, começou a publicar textos num blog em Julho de 2006. A sua identidade é desconhecida, crê-se que para ele próprio.

Um comentário:

redonda disse...

O texto parece-me conhecido.