sexta-feira, 4 de julho de 2008

Serviliana Dobler-Pyiu


A casa estava pintada de azul-cobalto por fora. Por dentro era rosa-quartzo e madeira petrificada. Dois anões de cabeças enormes e orelhas bicudas cozinhavam numa mesa onde luzia um fogão de campismo num cromado que cegava. Os três gatos comportavam-se como lémures. Os anões cirandavam enquanto coziam ovos e gemiam baixinho enquanto evitavam olhar-se. Os gatos cada vez mais se comportavam como lémures. Os anões enfeitaram-se para o jantar e cada um comeu o seu ovo cozido. Depois foram dormir. Quando adormeceram, os gatos deixaram de se comportar como lémures. No entanto os ovos dentro dos ventres dos anões portaram-se como ovos. Devido a isto os anões engravidaram.
Na manhã seguinte deram à luz dois lémures, que desataram a miar. Tendo os anões morrido no parto, a casa ficou com um grupo de lémures que imitavam gatos e um de gatos que se julgavam lémures. Quando os dois se encontraram geraram uma Entidade que era parte lémure parte gato, mas com personalidade de anão. Esse novo ser acabou com todos os outros. Ás vezes na solidão do quartzo-rosa a Entidade conversava com o butagaz cromado e dizia-lhe: Não os suportava, eram pouco parecidos comigo.
Serviliana Dobler-Pyiu, A gestação do absurdo

Serviliana Dobler-Pyiu surpreendeu o micro–mundo das artes literárias com O fiador de filamentos em 1992. Neste micro texto extraído duma das suas obras A gestação do absurdo, as palavras rodam como se fossem uma aranha já bebida a deslindar um cubo de Rubik. Ambas as obras foram publicadas pela Guano Conceptual.

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