segunda-feira, 27 de abril de 2009

Ajudem-me, amiguinhos!

Um dia envolto em dura parcimónia. Uma escada aberta por uma cisma de velho doido que tendo ficado paralisado pelos ventos tardios do amor ali jazia na cadeira de rodas como um vulgar lírio com a sua camisa amarela metido no vaso com rodas. O velho general tinha mandado abrir aquele acesso ao sótão para poder brincar com a neta, mas nunca tinha ido lá porque entretanto entrevara, vítima dum alongamento ousado da doença volante que o corroía. Assim Alice tinha que vir brincar com o velho para o seu apertado escritório onde só havia livros e estatuetas. Na sexta-feira Ermengarda tinha tido um avc não sem antes ter lido ao general um excerto de histórias de cavalaria e de lhe ter feito o broche de quarta-feira. Na quinta-feira sentiu-se mal, foi-se deitar e morreu. Antonino tinha ficado sem a criada duma vida e isso entristeceu-o. Começou a recusar a comida e refugiava-se no retiro para ouvir canções líricas. A sua dieta resumia-se a broa de milho peixe cozido e álcool. O primo Gerôncio mudou-se para a casa e veio fazer as vezes da falecida pelo menos até que se arranjasse outra criada para servir o rodinhas. O primo Gerôncio era um decorador de interiores e pintor amador que nunca tinha vivido com ninguém, mas era uma boa alma e tinha grande apreço pelo general que tinha salvo a sua mãe mais do que uma vez de situações difíceis, dado ser uma cinquentona com necessidades de botox e compras de roupa e pouco dotada de plástico, divorciada dum ex-toxicodependente que mal conhecia Gerôncio.
Antonino estava deprimido os olhos pareciam acinzentados pantanosos absorvidos por tudo que há de restos nos pântanos o entulho do lodo. Ficavam mais leves quando já estava bebido. Era um elefante velho e já pronto para a longa marcha rumo ao depósito de carcaças trabalhadas a marfim. O barulho de pequeno brinquedo da cadeira de rodas eléctrica fazia um todo com a carne do entrevado. Foda-se, parecia um cyborg.

General Cyborg, romance, MR, 2008

Este é o princípio do meu livro que está quase pronto. Alguém tem alguma ideia para onde posso mandar esta merda? (respondam por e-mail, por favor)

177 Páginas de prosa viciada em desapego total pelo lógico comportamento dos personagens. Recurso ao adjectivo fácil, à manha à pouca-vergonha e falta de respeito. Target de leitores possível: toda a gente com problemas emocionais ou mentais. Gente desequilibrada que ainda não tenha aderido ao feng-shui ou ao yoga, crentes, fãs de ficção-científica, renegados psicanalíticos, nativos norte-americanos, donas-de-casa em Xanax, fãs de playstation, e todas as espécies não leitoras. Até agora a população não-leitora que mostrou mais entusiasmo com a leitura foi um grupo de ornitorrincos dum jardim zoológico do norte da Europa. A primeira página deixou-os loucos de contentamento. Perfil do editor: meia-idade loira de olhos escuros e com disponibilidade para adiantar dinheiro sobre edições futuras, se for do planeta Duplus e tiver vagina dupla considerarei isso uma vantagem.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

O Poema final



Aos Amigos

Porque procuro no poema final e definitivo a face de Deus,
todos os versos que escrevi me hão-de condenar ao inferno.

Jorge Reis-Sá, Biologia do Homem, Quasi, 2004


Ao Inferno não digo, rapazola, mas és capaz de passar algum tempo no Purgatório, não por estes versos mas por todos os outros que de forma tola e melíflua soltaste neste mundo. Mas não te preocupes, depois de chateares algumas almas penadas, S.Pedro virá para te levar ao Paraíso onde poderás ver finalmente Deus. Devo no entanto avisar-te que Este estará de costas ouvindo chalaças de Tchecov sobre o portuga que meteu a padaria na sacristia. Tchecov em horrenda chacota conta anedotas referindo-se a ti como o poeta da broa mística e do folar salteado à luz da manhã. Só uma coisinha, durante os tempos de Purgatório poderás contar com cargas diárias de porrada administradas por Rimbaud que está insatisfeito com o Purgatório e quer ir para o Inferno a todo o custo para beber uma cerveja e encontrar outros contrabandistas e velhacos em geral.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Variação onírico-automática sobre o romance No Silêncio de Deus de Patrícia Reis



E então à tardinha fui parar a uma coffeeshop perto da Leidseplein e fiquei lá a beber um Chocomel. Grandes nuvens de fumo saíam de todos os lados. Pequenas fábricas de eternidade passavam os vulcões pulmonares e projectavam-se no vazio da sala fechada pelo tecto. Pedi uma abrótea com maionese de toranja. As pessoas que não conversavam faziam puzzles ou liam o jornal. Fui ao balcão e a meio a abrótea fugiu pela porta fora. Quando voltei estava sentada na mesa a escritora Patrícia Reis com uma ampulheta na mão. Tinha uma cara linda e podia sem custo fumar á chuva. Lá fora o duro padrão do céu augurava uma crucificação à Gauguin. Num pé a escritora tinha um soco holandês e no outro uma sandália árabe. Estava acompanhada por um cogumelo e um homem mais velho: Boa noite, sou o senhor Ayahuasca- apresentou-se ele. Foram vocês que assustaram a abrótea. – Não, respondeu ela com a elegância egoísta das beldades. Resolvemos ocupar a mesa antes que a maionese fugisse concluiu a escritora.

Todo o cenário desaparece e fico sozinho com Patrícia Reis. Entro em automático.

No livro tudo me faz lembrar a sequência da plantação francesa no Apocalipse Now. Os personagens parecem fantasmas ou zombies ou golems. A prostituta não está calibrada á medida do escritor. A jornalista, que teima em não sarar migra como um pequeno almoço de mesa em mesa como uma alma danada num banquete de bruxas. O romance tem um alvo específico, mas na sua construção age como um sniper oportunista. A maravilha do mundo são as pequenas confusões, as enguias eléctricas e aleatórias da natureza humana. A abrotea e a maionese de toranja são um acto falhado relativo ao efeito madeleine de Proust, o rateiro.

Patrícia Reis dá uma risada e responde - desculpe mas o meu nome é Cirano de Bergerac.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Susan Boyle (beije-a, Mr. King)



Elegante como um peru de Natal, afrontou com bravura centenas de pessoas que começaram por se rir de forma vil e abundante. Quando daquele corpo original lhe fugiu a voz, estarreceu e comoveu . Não é que venha daqui a paz ao mundo mas é um violento pontapé nas partes dos bonitinhos deste mundo extremamente feio. Solteira, nunca beijada, sozinha em casa e desempregada com um gato. E de repente vai ao Larry King. Tenho uma dúvida, no entanto, será que ela cantará pior ou melhor depois de ser beijada? De qualquer forma espero que tenha um bom primeiro beijo uma vez que esperou tanto tempo. Ou então ser beijada pelo próprio Larry King simbolicamente. Isso seria lindo e de extremo mau gosto como todas as coisas belas.

domingo, 19 de abril de 2009

Pele de mámore


Bom dia blog.

Espreito-te mas não falo contigo vai para um ano.

Foi tudo tão rápido; o curso, os escursionistas, tão deliciosamente diferentes entre si, o Mário Cláudio, as casas de banho em mármore, o jantar, as possibilidades; depois, a realidade. Tive saudades, admito.


Farto-me de viajar e no entanto não saio do sítio.

O mesmo clima pós aquecimento global. A mesma cidade invicta, vencida. O mesmo escandaloso contraste entre o que podia ser e o que é. O mesmo desânimo nas paredes, nos bichos e nos homens. Ainda a tua agenda quotidiana, a minha urgência. Que se foda a tua agenda quotidiana. Eu vou mas é tentar salvar a pele agora que não a tenho. Eu vou mas é fazer a barba.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Parkour Fúnebre



POR ENTRE OS MÁRMORES

O portão está aberto, entra. Sobe as primeiras escadas,
Um curto lanço, dois pequenos degraus. Segue depois pelo
carreiro de terra batida, apenas alguns passos até olhares
à esquerda, caminhares por entre os mármores. Desvia-te


das flores, não pises as vassouras que as viúvas deixam de
sábado a sábado. Vira agora para a direita e olha. Vê bem o retrato
a sépia pousado ao vento, debruça-te sobre a campa, reza.
E deixa-te com as flores, o portão sempre fechado.

Biologia do Homem, Jorge Reis-Sá, ed. Quasi, 2004


Em Por Entre os Mármores Reis-Sá ensaia a primeira tentativa do que eu chamo o poema-parkour ou se preferirem o poema –orientação. Outros nomes para este poema avançado seriam por exemplo Parkour Enérgico do Cangalheiro Saltitante ou ainda Parkour de Finados. Em poucas palavras, o exercício físico mistura-se com um revivalismo fúnebre. No próximo post debruçar-me-ei sobre o enigmático poema Dharma & Greg.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Avariação a Jorge-Reis-Sá


PELA MANHÃ O PÃO

Pela manhã o pão ou as bolachas com o leite
fundas na chávena. Tu e o jornal no
alçado, um trago de sumo sempre que
te via os passos, como se corresse, te seguisse.

O jornal ainda está na pasta como o deixaste
uma última vez, já os óculos o acompanham.

Mas o pão ainda se encontra à entrada da boca.

Biologia do Homem, Jorge-Reis-Sá, ed. Quasi, 2004


PELA MANHA O MOLETE

Pela manha o molete ou as cookies com o bagaço
sopas na xícara. Tu e o papagaio
á tiracolo, um sorver da zurrapa sempre que
te via a púbis, como se corresse, tece-me os guizos.

O papagaio ainda está empastado como o deixaste
uma penúltima vez, já as lunetas vão atrás dele.

Mas o molete ainda se encontra à entrada da boca
(e assim não tenho sítio para meter isto!)

Biologia do Cro-Magnon, Alien Taco, 2009

Na senda dos aprendizes do Renascimento ousei imitar um poeta Jorge –Reis Sá, aproveitando a maneira subtil como ele carameliza as palavras para redigir uma variação bruta e simplista que representa apenas o os meus sentimentos pueris e as idiossincrasias do meu humilde e profano dia-a-dia .Comecei a ler a Biologia do Homem e logo aos primeiros poemas me apercebi estar perante uma coisa fora do vulgar. Os poemas são tão maus que é minha convicção que este, o poeta, não reconheceria um bom poema mesmo que ele aparecesse vestido de poema com um letreiro a dizer sou um poema e a seguir o mordesse numa nalga. Estou com curiosidade de conhecer este poeta invulgarmente mau. E dar um abraço merecido porque eu tal como ele tenho instintos anti-poéticos, embora, felizmente para toda a gente, eu não escreva poesia. Todavia fiquei tocado por este livro porque em termos técnicos e viscerais é do pior que tenho lido. O poema Pela Manha o Molete é o corolário dessa experiência poético tenebrosa proporcionada pelo poeta Jorge Reis-Sá.