terça-feira, 25 de novembro de 2008

A Ilha dos Corações Partidos - A Outra Parte

Tinha ficado três dias e três noites sentada junto às marés. recebia a água na ponta dos dedos dos pés como alimento. Sempre fora persistente, e também esquiva às tarefas diárias impostas pelos ilhéus. Recebia a água e vertia os olhos na imensidão, certa de que o momento estava para chegar. Na sua curta vida aquela era a única praia que conhecia, tinha nascido ali, guardava no peito a herança de todos os ilhéu, um coração que mal brotara, já de si vinha despedaçado. Suspirava junto às árvores, e sonhava... como sonhava!... Sempre o mesmo e colorido sonho, a de um homem só com um olho, de mãos macias e rosto encovado, que por entre os rochedos, por entre as águas e por entre a multidão chegava finalmente à ilha para colar todos os pedaços da sua herança despedaçada.
Ao fim dos três dias, avista ao longe a multidão que se agita. Surgira da bruma o rosto mais belo que alguma vez vira. Ao fim de algum tempo, o rosto e o seu corpo de homem afastam-se da multidão, caminhando para ela. O seu coração fragmentado sentiu-se a tremer, e as suas pernas receberam ordem de despejo. Correu a esconder-se no mato. Deixou que os olhos não perdessem a figura de vista, bebeu-lhe o corpo, bebeu-lhe o passo, bebeu-lhe o olho, aquele único e grande, que os seus sonhos lhe tinham mostrado entre bocejos e suspiros.
Ali se deixou, tremendo e chorando por esse sonho acontecido.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A Ilha dos corações partidos III

A maré começou a vazar retirando o manto marinho ao homem no cimo da rocha. O zarolho ziguezagueou fausto de exausto e os locais apressaram-se a trazê-lo para a caverna. Era um grande buraco na rocha na linha da praia com a selva que lhes dava abrigo. Trouxeram-no para cima de uma fogueira e deram-lhe porco com ananás numa folha de árvore. Depois do repasto houve muita galhofa e até algum despudor quando os locais, numa brincadeira de crianças grandes, tentavam acertar sucessivamente com puré de raízes no buraco onde havia habitado o olho do zarolho. No fim o visitante e o que parecia ser o líder da comunidade, um velhote, deslocaram-se para aliviarem a tripa e segundo o velho para fortalecer a terra das ilhas.
- Cagamos sempre aqui. Cada um tem a sua área e assim ajuda-se o lustroso solo. O zarolho acenou. Depois voltaram. Na caverna já todos tinham adormecido, mas o zarolho e o velho continuaram a conversar.
- As portas para o lado de lá fecharam-se. Não há mais ninguém. – Confessou o homem ao velho sem ponta de emoção.
- Bem, então precisas de um sítio para te instalares. Escolhe um pedaço da caverna e depois veremos para que tens jeito.
- Não pretendo ficar. Quero seguir pela selva até ao Pico dos Três Vértices e encontrar as mulheres do Milho Estoirado.
- As mulheres do alto não gostam de companhia – Retorquiu o velho.
- Nem eu. Procuro só uma delas. Sonhei com ela quando estava no outro lado. Tem uma carinha linda e olhos grandes e azuis. Além disso pula e dança. Eu chamo-lhe Cintilante Luz Que Brilha Sem Cessar Na Única Pupila do Meu Olhar.
- É um nome um bocado grande – Disse o velho, jocoso.
- É uma grande mulher – Retorquiu o zarolho.
- E se ela não sonhou contigo? – Perguntou o velho.
- Bem, nesse caso volto para junto de vocês e mais dia, menos dia quando a maré estiver cheia deito-me na rocha em vez de me sentar.
A fogueira estava a apagar-se e o ancião levou o visitante a um recanto de pedra e convidou-o a repousar. O zarolho fechou o olho e adormeceu. O velhote esgueirou-se para o seu canto da caverna e fez vibrar uma rabeca enquanto entoava uma frase vezes sem conta.

sábado, 22 de novembro de 2008

Theme song to Fantasy Island

este sonzinho fica aqui até eu decidir o que fazer ao zarolho (lol). Redonda obrigado pelas tuas palavras e quando quiseres reentrar fá-lo.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A Ilha dos corações partidos II

A multidão vislumbrou a figura que emergia da bruma pouco antes de o abraçar. Estava coberto de cal branco, o que parecia ser sangue seco e areia. Tinha ornamentações escarificadas na face. Um olho negro como o carvão contrastava com a caverna de cicatrizes onde o outro olho luzia por estar ausente.
Depois dos cumprimentos e abraços o zarolho afastou-se da multidão. Passeou pela orla da praia e foi-se sentar numa rocha a olhar para o mar. O sol já não se aguentava, estava a ser empurrado para o fundo. Entardecia e a multidão foi à sua vida. O homem levantou-se e deu um mergulho no mar, aproveitando para urinar em recato. Depois de jantarem os ilhéus vieram para perto do zarolho que continuava pesado como uma estátua em cima da pedra. A maré estava a subir, sentaram-se numa fila paralela às últimas areias lodosas. À medida que a maré subia a figura do zarolho ficava mais tapada e bastante mais lúdica para os locais que nunca tinham visto nada assim.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A ilha dos corações partidos

Há muitos anos atrás, quando a natureza confiava no homem e facilmente lhe oferecia abrigo e comida, todos apenas se ocupavam na tarefa de ser felizes. Alguns seguiam os seus próprios prazeres, outros resolviam apaixonar-se e viver em função de um outro que podia ser o mesmo ou variar simultânea ou sucessivamente. Havia no entanto uns poucos que afirmavam ter o coração despedaçado. Numa languidez e melancolia pecaminosa ou numa intranquilidade nervosa aborreciam os demais que não os compreendiam. Não percebiam porque não seguiam o seu exemplo e ao invés criavam problemas que não existiam. Foi então resolvido que esses poucos deveriam ser exilados numa ilha que não ficava longe, mas cujo acesso difícil era somente possível em alguns dias do ano, quando o vento acalmava e a maré subia, permitindo que os pequenos barcos que lá tentavam ir, não se despedaçassem nos rochedos. Dito e feito, mal era observado o problema e depois de deixarem passar uns poucos dias para terem a certeza que estava em causa o mal condenado e não uma dor de barriga, eram remetidos para a ilha, sem apelo nem agravo. Esta até então desabitada passou a ser conhecida pela Ilha dos corações partidos. Enquanto as condições não o permitiam, eram os futuros exilados confinados num campo limitado para o seu mal não se propagar ou contagiar qualquer incauto. Ora, não obstante todos os cuidados, o número de afectados aumentava de dia para dia e alguns até pareciam ansiar pela condenação ao exílio. Entre os imunes estavam os mais velhos, mais avisados e experientes. Até que um dia repararam que entre eles já não cresciam crianças. Temeram então o pior e julgaram-se os últimos homens da terra porque os da ilha apenas poderiam ter morrido de inanição. Quando apenas restava um, meio enlouquecido pela solidão, resolveu ir até à Ilha para aí se encontrar com a sua morte. Esperou pelo vento e maré propícios e com dificuldade contornou os rochedos. Eis que quando se aproximava julgou ser vítima de uma alucinação porque ouvia risos. Quando finalmente chegou à praia foi rodeado por crianças, jovens, velhos, homens e mulheres, aparentemente nem infelizes ou felizes, contudo vivos.