domingo, 7 de março de 2010

O que é o amor?

(fragmento de crepúsculo em agradecimento a duas mulheres muito especiais)

Temos dentro de nós a consciência que, depois de Emily Dickinson, tudo o que se disser do amor poderá ficar aquém. Mas dizer o amor é apenas uma das possibilidades de o viver e, pelo menos, teoricamente, todas as experiências particulares que o compõe poderão ser ditas; sem que nada se acrescente no conceito, é certo, porém ocasionado que algo cresça na imaginação. O que pretendo dizer com isto é que havendo Dickinson dito o amor não nos privou, no entanto, de o viver e talvez seja esse o maior mérito da sua concretização, que apela, não para o que se encontra fora mas para o que dentro de nós se busca no resto. Será pois na tentativa de instaurar uma definição se antes um apelo que encontra ressonância em toda a humanidade, a expressão de uma fé comum. Do homem em geral sabemos a biologia e quanto dessa força sedenta do divino é pelas gravidades sufocantes uma ânsia de se elevar à tona e expirá-las num grito. Seremos então diferentes para afirmar a nossa semelhança, ou será a diferença mesma o motor de aproximação que desejamos? Afinal, o que por todo o lado se tem tornado óbvio é que as simetrias, as dicotomias, os antónimos mais não são que dorso e ventre do mesmo animal, isto é, formas complementares de afirmar o mesmo. E, neste universo, que de outra forma se poderiam as coisas encontrar?

Emily Dickinson amou o mundo, o mundo ama Emily Dickinson.


Joni Mitchell - Both Sides Now



(a outra senhora)

segunda-feira, 1 de março de 2010

O bem maior


Aquilo pareceu-me demasiado desprezível, mesmo enquanto forma de trato de um objecto. O que acontece é que estávamos na presença de uma conjugação peculiar de aspectos que faziam de mim uma testemunha especialmente sensível, e digo que talvez isso tenha exacerbado o que, à partida, não seria de causar grande espanto ou até mesmo indignação. Geralmente não nos é susceptível o destino das entidades inanimadas, aliás que a maior parte delas existe precisamente para ser manuseado da forma que melhor nos aprouver, e, de facto, ao fim e ao cabo era disso que se tratava: um homem a exercer de uma maneira legítima o poder que detinha sobre os objectos. Agora, o que eu não podia ignorar e que de imediato me queimou foi a possibilidade de, depois de haver passado várias horas contrariado num centro comercial de artigos de fora de época, apinhadíssimo de gente ávida de oportunidades e das complementares ofertas de moda, auto-estima, relaxamento, terapia, ainda haveria lugar para observar na banca dos livros o que até então me tinha escapado nas boutiques, nos salões, nas perfumarias, nos prontos a vestir etc. O sujeito havia, efectivamente, aplicado com sua minúscula mão uma repreenda brusca num livro apenas porque este se recusava a ficar empoleirado na posição que se impunha, complementando, ainda para mais, o gesto de um impropério qualquer rosnado entre-dentes. Todos sabemos, à excepção dos críticos, que é ridículo insultar um livro; insultam-se quanto muito os escritores, o objecto em si, no entanto, é indiferente a qualquer tipo de perdigoto, e tenho para mim que aquele vendedor apenas presenteava personalidade ao tomo para depois o desancar à vontade. Reunidas, não obstante, estas circunstâncias, é claro que aparece sempre no sítio certo e no momento oportuno um ilustre sensível para se indignar, um daqueles solitários como eu que, por seu lado, personaliza os livros apenas para os tratar como ilustres antepassados, dignos da maior reverência.
- Ao meu senhor!, ao menos trate-o como objecto que é.
- O quê?!
Mas eu não respondi, e ele depois rastejando para o lugar de atalaia também me ignorou.
Eu estava ali em busca de um possibilidade que pudesse salvar a tarde, mas depois daquele episódio senti que devia fazer a vontade ao mundo e sair dali sem gastar tostão. Sempre tive para mim que a melhor forma de exercer o nosso direito de protesto enquanto consumidores é contribuindo de uma forma implacável para a selecção natural, comprando somente onde avaliamos ser meritório merecimento. É então esperado que, democraticamente, sobrevivam as melhores lojas de comércio… Contudo e enquanto não conhece efectividade esta forma de justiça penam os artigos inocentes que todos os dias sofrem humilhação, se não no corpo, na alma, se não na alma na memória, se não na memória no símbolo. E, dado este facto, não tem, o homem livre, o dever de resgatar entretanto o maior número de vítimas socorrendo-se de todos os meios a seu dispor, não só da sua afirmação enquanto homem, mas também do seu poder enquanto impositor dos interesses da comunidade?

Imaginem agora que estamos a falar de livros e não de seres humanos.