domingo, 7 de março de 2010

O que é o amor?

(fragmento de crepúsculo em agradecimento a duas mulheres muito especiais)

Temos dentro de nós a consciência que, depois de Emily Dickinson, tudo o que se disser do amor poderá ficar aquém. Mas dizer o amor é apenas uma das possibilidades de o viver e, pelo menos, teoricamente, todas as experiências particulares que o compõe poderão ser ditas; sem que nada se acrescente no conceito, é certo, porém ocasionado que algo cresça na imaginação. O que pretendo dizer com isto é que havendo Dickinson dito o amor não nos privou, no entanto, de o viver e talvez seja esse o maior mérito da sua concretização, que apela, não para o que se encontra fora mas para o que dentro de nós se busca no resto. Será pois na tentativa de instaurar uma definição se antes um apelo que encontra ressonância em toda a humanidade, a expressão de uma fé comum. Do homem em geral sabemos a biologia e quanto dessa força sedenta do divino é pelas gravidades sufocantes uma ânsia de se elevar à tona e expirá-las num grito. Seremos então diferentes para afirmar a nossa semelhança, ou será a diferença mesma o motor de aproximação que desejamos? Afinal, o que por todo o lado se tem tornado óbvio é que as simetrias, as dicotomias, os antónimos mais não são que dorso e ventre do mesmo animal, isto é, formas complementares de afirmar o mesmo. E, neste universo, que de outra forma se poderiam as coisas encontrar?

Emily Dickinson amou o mundo, o mundo ama Emily Dickinson.


Joni Mitchell - Both Sides Now



(a outra senhora)

segunda-feira, 1 de março de 2010

O bem maior


Aquilo pareceu-me demasiado desprezível, mesmo enquanto forma de trato de um objecto. O que acontece é que estávamos na presença de uma conjugação peculiar de aspectos que faziam de mim uma testemunha especialmente sensível, e digo que talvez isso tenha exacerbado o que, à partida, não seria de causar grande espanto ou até mesmo indignação. Geralmente não nos é susceptível o destino das entidades inanimadas, aliás que a maior parte delas existe precisamente para ser manuseado da forma que melhor nos aprouver, e, de facto, ao fim e ao cabo era disso que se tratava: um homem a exercer de uma maneira legítima o poder que detinha sobre os objectos. Agora, o que eu não podia ignorar e que de imediato me queimou foi a possibilidade de, depois de haver passado várias horas contrariado num centro comercial de artigos de fora de época, apinhadíssimo de gente ávida de oportunidades e das complementares ofertas de moda, auto-estima, relaxamento, terapia, ainda haveria lugar para observar na banca dos livros o que até então me tinha escapado nas boutiques, nos salões, nas perfumarias, nos prontos a vestir etc. O sujeito havia, efectivamente, aplicado com sua minúscula mão uma repreenda brusca num livro apenas porque este se recusava a ficar empoleirado na posição que se impunha, complementando, ainda para mais, o gesto de um impropério qualquer rosnado entre-dentes. Todos sabemos, à excepção dos críticos, que é ridículo insultar um livro; insultam-se quanto muito os escritores, o objecto em si, no entanto, é indiferente a qualquer tipo de perdigoto, e tenho para mim que aquele vendedor apenas presenteava personalidade ao tomo para depois o desancar à vontade. Reunidas, não obstante, estas circunstâncias, é claro que aparece sempre no sítio certo e no momento oportuno um ilustre sensível para se indignar, um daqueles solitários como eu que, por seu lado, personaliza os livros apenas para os tratar como ilustres antepassados, dignos da maior reverência.
- Ao meu senhor!, ao menos trate-o como objecto que é.
- O quê?!
Mas eu não respondi, e ele depois rastejando para o lugar de atalaia também me ignorou.
Eu estava ali em busca de um possibilidade que pudesse salvar a tarde, mas depois daquele episódio senti que devia fazer a vontade ao mundo e sair dali sem gastar tostão. Sempre tive para mim que a melhor forma de exercer o nosso direito de protesto enquanto consumidores é contribuindo de uma forma implacável para a selecção natural, comprando somente onde avaliamos ser meritório merecimento. É então esperado que, democraticamente, sobrevivam as melhores lojas de comércio… Contudo e enquanto não conhece efectividade esta forma de justiça penam os artigos inocentes que todos os dias sofrem humilhação, se não no corpo, na alma, se não na alma na memória, se não na memória no símbolo. E, dado este facto, não tem, o homem livre, o dever de resgatar entretanto o maior número de vítimas socorrendo-se de todos os meios a seu dispor, não só da sua afirmação enquanto homem, mas também do seu poder enquanto impositor dos interesses da comunidade?

Imaginem agora que estamos a falar de livros e não de seres humanos.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Novo atelier de escrita

Penso que o novo atelier de escrita em Serralves, com o tema "Homens e Bichos" teve início na quarta-feira passada. Como não pude ir, será que alguém que passe por aqui e tenha ido, me poderia dizer:
- Como é que foi a primeira sessão?
- Ficámos como algum TPC?
- Vai haver sessão amanhã?
Seria óptimo uma resposta em post ou em comentário aqui ou então em mail para escritaredonda@gmail.com

domingo, 19 de julho de 2009

Desprezível


Sobre o romance As Benevolentes de Jonathan Littel, diz Mario Vargas Llosa que não contém um único personagem que não seja absolutamente desprezível. É verdade, mas o livro é muitíssimo bom.
As Benevolentes são uma viagem épica sobre a distorção moral do homem e sua disponibilidade para o mal absoluto. Max Aue, personagem fícticia que escreve as suas memórias, conta-nos a maneira como ascendeu na estrutura SS Nazi. Percorre também os seus tempos na frente de Estalinegrado e descreve a inominável vida nos campos de concentração e extermínio. Fá-lo, por um lado, com uma falta de arrependimento explícito e, por outro lado, com a ilustração dos seus constantes dilemas morais.
Na mitologia grega As Benevolentes, também conhecidas por Erínias ou Eumênides, são deusas perseguidoras, vingadoras e secretas.
É díficil dizer-se o que faz de uma obra intemporal, ou incontornável. É díficil dizer-se que papel terá As Benevolentes na literatura. Depende de Littel e dos seus próximos livros e depende de outras coisas. Para já, As Benevolentes é um romance magnífico.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Welcome to Vulcan, Canada - G4tv.com

olá redonda ,rica vila espacial não achas? :)

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Praça da Alegria - receita - "Bife à Chefe Silva"

O chefe Silva no seu melhor bife de sempre.Um mestre no seu melhor.Não houve crueldade nestas filmagens ,a vaca foi sedada antes de lhe ser retirado o bife.

sábado, 27 de junho de 2009

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Lendas Gregas


A serena e ornamentada sequência de acontecimentos segue com minúcia a caracterização duma cena cujo rendilhado picaresco, digo picaresco porque não quero subverter a curiosidade dos queridos leitores com o termo pornografia. Um impante falo rodeado de limos com lapas e conchas sedimentados nos colhões inchados a foder com um lago salgado e morno cheio de plantas e animais que esperam em frenesim erótico a descarga em onda do enorme pau, destacado mastro de veleiro, que assim se transporta pelas algas estiradas da margem do lago oh, sim que apenas poça parece ao ser assim roçado. O enorme bacamarte afoga-se lentamente como o último grumete da última vigia a ser sugado por um mar calmo e receptivo no corpanzil de lançadora de pesos que era a lagoa. E fodem com golfinhos zangados o mastro inchado do veleiro e a lagoa. E fodem como principiantes e depois mais devagar como reformados e depois aceleram para os vinte anos e finalmente a lagoa fica branca e tranquila o mastro do veleiro já cuspiu. E foi por esses dias que os locais começaram a chamar àquele sítio a Lagoa de Ouzo um espécie de pastis grego que torna a água esbranquiçada cor de sabão ou nhanha.
Popeye Green, Lendas Gregas, Ed. Quasimodo, 2009

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Anti-Poema ou Poema Extremófilo (como nos bichinhos)

Um frasco de absinto com água das pedras
Um rectângulo cheio de Fedras
Rotundas para mamar betão
E o resto é restolho de Mirmidão

Conversos conventos e éter
Fugazes virtuosos
E o brilho ofuscante do cagalhão de beterrava
Terra brava de escravos
Salgueiros pagos no Paraíso
Ideia iníqua
E conclusão ridícula.

JCM sobre Branca de neve (II)

Estonian Folk Dancing Part 1

segunda-feira, 8 de junho de 2009

O naufrágio do mar



Verrugas usando os lábios comem os escolhos das caras naufragadas.
Refastelam-se as santolas com os restos dos marinheiros.
É fartar vilanagem que há muito que comer
Muito a ser roído pelo mar que engole desde medula de marinheiro a aços de proa.
Comilão corrosivo sempre borracho com mercúrio e outros manjares
E do que os barcos vomitam e cagam.


O naufrágio do mar (excerto), Popeye Green, Edição de autor

sábado, 6 de junho de 2009

William Shatners Common People lego animation

belo poema ,excelente animação.

Geronte Bucéfalo Jr.



A Ilha dos Imortais

Dentro de um barco, estão homens.
O barco está dentro duma garrafa.
Tudo isto é normal, aborrecido.
Mas, os corações dos marinheiros
Estão fora dos corpos, pregados à pele.
Isto é anormal, absurdo mas excitante.

Ao chegarem à ilha os marinheiros entregaram os corações
Às mulheres do fim do mundo.
Artérias e aortas brilhavam em mãos de prata.
Elas podiam ver o pulsar por fora,
examinar os porquês do amor, contar os níveis de ritmo
eram eles nas mãos delas
as mulheres do fim do mundo comeram os corações
num repetir de mandíbulas ,
Não queriam ciência, mas carne.
Repletas as bocas de carniça,
faltava preencher o último vazio e consumar a boda.
Cheios de mar, os chegados, encheram-lhes as flores
Com nacos de carne e litros de leite.

Ninguém olhou para trás ao deixar terra.
Na praia, acenando, ficaram as mulheres do fim do mundo
Deusas grávidas dos mareantes.


Geronte Bucéfalo jr., Águas, Ed. Quasímodo, 2011

G. B jr. Publicou este livro em 2011 e foi aclamado pela Academia de Letras dos Dentistas e agraciado com o prémio Doc. Holliday / Almada Negreiros em 2010. Actualmente encontra-se no passado.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Pulp wait to play "Common People" on Italy's Roxy Bar

Versos arborícolas



A salvação do Ikea

Como é bela a sandice colada á velhice.
Ás árvores ninguém desdiz a idade
Mas antes as gabam e aos seus arcaicos ramos
Verdura pendente do céu
Esparregado plantado no tecto azul
Estrofes fendidas no vento
Grossa riqueza oferecida em sombra
Alvéolos dum mundo que já respira mal.
Refúgio de bichos.
Matéria de berço e de barco de recreio.
Cadeira de crisma e caixão.
Árvores sandeiras, velhas matreiras
Cabe a vós salvar o mundo e o Ikea.



Terebentino Lombardo, Nu no Éden


Terebentino Lombardo é funcionário público há noventa e tal anos. O tempo livre dedica-o á poesia. Tem um papagaio loiro de bico doirado e pouco mais. Desde 2002 publica regularmente na Trampolim Taciturno sempre o mesmo livro: o clássico florestal Nu no Éden.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Serralves em Festa 09 Entrevista com a Vénus de Willendorf



Aproveitando o Serralves em Festa tive ocasião de entrevistar a Vénus de Willendorf, que se apresentou com a sua peça-performance Cona Gorda. Descontraída e com um inglês de leve acento teutónico, a beldade ancestral propiciou-me esta breve e descomposta entrevista.

Qual a sua opinião sobre a lipoaspiração?
Acho uma estupidez.
Qual a sua comida favorita?
Tudo desde que esteja morto e cozinhado e isso inclui vegetais, frutos carne de caça e fast food e também alimentos pré-cozinhados e congelados. Também gosto de peixe cru e bife tártaro.
Qual a sua opinião sobre o aquecimento global?
Vai aumentar a venda de gelados bebidas frescas e granizados. Vai também aumentar a percentagem de bebedeiras nocturnas para ficarmos quentinhos toda a noite e podermos dormir de dia e assim evitar a exposição prolongada ao sol para não ficarmos sem pele.
Gosta de Portugal?
Sim muito é um país onde ainda há muita fé no princípio feminino, por isso nunca me deixam pagar nos restaurantes. Ontem por exemplo comi um atum inteiro grelhado com uma arroba de batatas e só me cobraram os 150 finos com groselha, são uns queridos.
Agora uma pergunta de cariz pessoal algo melindrosa, é verdade que rompeu o seu enlace amoroso com o boneco da Michelin?
Não quero falar nisso, puta que par…. esse magricela de mer….!!!!
O que acha de Boticelli?
O melhor pintor de anorécticas de todos os tempos.
Conhece alguma coisa da cultura portuguesa?
Sim é uma cultura fascinante, é rica e gorda.
Que anda a ler neste momento?
Schnitzler, os aforismos.
O grande mistério que gostaria de descobrir?
É mais uma pequena curiosidade, gostaria de descobrir o teor relacional de Rosa Botero com os anões.
Relativamente à sua performance aqui no Serralves em Festa o que é realmente o espectáculo Cona Gorda?
Foi uma ideia que eu tive antes de me separa do meu último casamento com um lutador de sumo, antes de eu o deixar em lágrimas ele disse-me que eu era a cona gorda dele
Vindo dum homem que eu amava essas palavras nunca me deixaram e pouco depois ele morreu esmagado no ringue. Sempre lhe disse para ele comer mais mas era um pisco, e pagou por isso. Basicamente Cona Gorda a peça é o diálogo entre mim e o fantasma dele.
Projectos futuros?
Amar comer ser feliz e criar.
No plano artístico pretendo fazer uma peça de cariz vingativo e pessoal contra o filho da pu… do Michelin, esse cabr….
Pretendo ainda retomar a terapia relativa ao mal que me aflige: o sindroma de tourette.
Obrigado pelo seu tempo e simpatia.
De nada seu cabr…de mer…minetei…

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Serralves em Festa 09


Os dez, vinte anos de Serralves pelo olhar atento de Serafim Ogro fotógrafo de ocasiões, vulgo casamentos e baptizados. Algo lhe captou o olhar nesta catita e pouco formatada beldade.

sábado, 30 de maio de 2009

Epifania ao amanhecer




Vi um gatinho a miar numa sardinheira
Ouvi um gaio assobiando numa mansarda
Senti um anjo a pairar sobre estrumeira
Cheirei o pio duma abetarda
Vulgares são todas as coisas mesmo as raras
Só Deus é Único ao inventá-las.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Mostra de Autores Portugueses Grandes


Ousei então com suave e esquinado olhar percebe-la no meio da banheira com a touca metida nas orelhas como uma sereia de peitos vivos. Tudo começou a ficar molhado conforme ela se contorcia a dançar uma música oriental e atirava a água para o chão que agia como o mármore age, isto é, mantendo tudo onde estava.

Vou a banhos!, Gertrudes Triba D´Ista, Edições Vers le Coni, 2009


Um dia tão lindo que dá vontade de sair de casa com o último livro da Júlia Pinheiro e ir para o parque receber a grande natureza levar uma merenda partilhá-la com outras pessoas, parece um falso verão índio difuso de pasteleria sensível e furnida e o verde primaveril. O colorido das flores naturais manchados com uma espectral e colorida roda psicadélica. Estonteante. No fim do lanche quando já sentirem o peso das vitualhas nas entranhas dirijam-se à mata e com as páginas do romance aliviai vosso cú de remansos de merda folículos de festim. As páginas jazem entre os verdes matagais o seu branco tingido por restos que estrumariam a terra não fossem desviados para tão vil fim.

O quadro português, Bergantin Marmota, Edições Vers le Coni ,2009

sábado, 9 de maio de 2009

Viva Vasco Granja! (bonecada Vs catequese (crónicas da infância))



Vasco Granja foi um dos grandes amigos da minha vida de criança até começar a ter borbulhas e começar a sentir tesão pelas empregadas fabris que orlavam a casa dos meus pais de meias e chinelos com fardas que não raro aprofundavam as curvas da espécie quando comprimidas. Isso era à semana. Ao sábado havia bonecada e catequese.
Mas voltemos atrás a Vasco Granja, esse homem que a esta hora deve estar no céu rodeado de estranhos e abstractos desenhos animados checos e de Droppies a ter uma conversa com Tex Avery sobre a amabilidade dos anjos de só falarem português e inglês para cada um deles. Do que me lembro até certa altura havia uma certa falta de recursos da minha mãe para que eu fosse á catequese quem em certa medida era o Nemesis do Granja nas tardes de sábado. No entanto, fomos construindo entendimentos que me permitiam faltar de vez em quando desde que não deixasse de ir ter com Jesus numa base regular.
A arte de Vasco Granja em escolher e apresentar desenhos animados era um oásis de imaginação numa televisão primitiva pouco apetecível para as crianças. Não sei o que aconteceu á minha catequista que era boa mulher embora um pouco tosca mas de grande coração, provavelmente também já morreu deve estar no céu a falar com os anjos sobre o custo da redenção ou outra coisa meia tosca tipo a diferença entre a orelha colada por Jesus no soldado e a orelha de Van Gogh, que deve estar ao lado resmungando que se o tivessem deixado podia ter dado um bom padre.
Toda esta bizarra combinação de elementos falsamente auto-biográficos e sacristia-cartoon para homenagear a figura singular e amável do homem que semeava bonecada pode parecer estranha, mas se quiser coisas coerentes vá pró Abrupto! Este é um blog de ideias híbridas e conteúdos avulsos e incoerentes. Viva Vasco Granja!


Nota. Quando digo este é um blog pode parecer ligeiramente esquizofrénico visto praticamente só eu escrevo aqui. E além de parecer é mesmo.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Ajudem-me, amiguinhos!

Um dia envolto em dura parcimónia. Uma escada aberta por uma cisma de velho doido que tendo ficado paralisado pelos ventos tardios do amor ali jazia na cadeira de rodas como um vulgar lírio com a sua camisa amarela metido no vaso com rodas. O velho general tinha mandado abrir aquele acesso ao sótão para poder brincar com a neta, mas nunca tinha ido lá porque entretanto entrevara, vítima dum alongamento ousado da doença volante que o corroía. Assim Alice tinha que vir brincar com o velho para o seu apertado escritório onde só havia livros e estatuetas. Na sexta-feira Ermengarda tinha tido um avc não sem antes ter lido ao general um excerto de histórias de cavalaria e de lhe ter feito o broche de quarta-feira. Na quinta-feira sentiu-se mal, foi-se deitar e morreu. Antonino tinha ficado sem a criada duma vida e isso entristeceu-o. Começou a recusar a comida e refugiava-se no retiro para ouvir canções líricas. A sua dieta resumia-se a broa de milho peixe cozido e álcool. O primo Gerôncio mudou-se para a casa e veio fazer as vezes da falecida pelo menos até que se arranjasse outra criada para servir o rodinhas. O primo Gerôncio era um decorador de interiores e pintor amador que nunca tinha vivido com ninguém, mas era uma boa alma e tinha grande apreço pelo general que tinha salvo a sua mãe mais do que uma vez de situações difíceis, dado ser uma cinquentona com necessidades de botox e compras de roupa e pouco dotada de plástico, divorciada dum ex-toxicodependente que mal conhecia Gerôncio.
Antonino estava deprimido os olhos pareciam acinzentados pantanosos absorvidos por tudo que há de restos nos pântanos o entulho do lodo. Ficavam mais leves quando já estava bebido. Era um elefante velho e já pronto para a longa marcha rumo ao depósito de carcaças trabalhadas a marfim. O barulho de pequeno brinquedo da cadeira de rodas eléctrica fazia um todo com a carne do entrevado. Foda-se, parecia um cyborg.

General Cyborg, romance, MR, 2008

Este é o princípio do meu livro que está quase pronto. Alguém tem alguma ideia para onde posso mandar esta merda? (respondam por e-mail, por favor)

177 Páginas de prosa viciada em desapego total pelo lógico comportamento dos personagens. Recurso ao adjectivo fácil, à manha à pouca-vergonha e falta de respeito. Target de leitores possível: toda a gente com problemas emocionais ou mentais. Gente desequilibrada que ainda não tenha aderido ao feng-shui ou ao yoga, crentes, fãs de ficção-científica, renegados psicanalíticos, nativos norte-americanos, donas-de-casa em Xanax, fãs de playstation, e todas as espécies não leitoras. Até agora a população não-leitora que mostrou mais entusiasmo com a leitura foi um grupo de ornitorrincos dum jardim zoológico do norte da Europa. A primeira página deixou-os loucos de contentamento. Perfil do editor: meia-idade loira de olhos escuros e com disponibilidade para adiantar dinheiro sobre edições futuras, se for do planeta Duplus e tiver vagina dupla considerarei isso uma vantagem.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

O Poema final



Aos Amigos

Porque procuro no poema final e definitivo a face de Deus,
todos os versos que escrevi me hão-de condenar ao inferno.

Jorge Reis-Sá, Biologia do Homem, Quasi, 2004


Ao Inferno não digo, rapazola, mas és capaz de passar algum tempo no Purgatório, não por estes versos mas por todos os outros que de forma tola e melíflua soltaste neste mundo. Mas não te preocupes, depois de chateares algumas almas penadas, S.Pedro virá para te levar ao Paraíso onde poderás ver finalmente Deus. Devo no entanto avisar-te que Este estará de costas ouvindo chalaças de Tchecov sobre o portuga que meteu a padaria na sacristia. Tchecov em horrenda chacota conta anedotas referindo-se a ti como o poeta da broa mística e do folar salteado à luz da manhã. Só uma coisinha, durante os tempos de Purgatório poderás contar com cargas diárias de porrada administradas por Rimbaud que está insatisfeito com o Purgatório e quer ir para o Inferno a todo o custo para beber uma cerveja e encontrar outros contrabandistas e velhacos em geral.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Variação onírico-automática sobre o romance No Silêncio de Deus de Patrícia Reis



E então à tardinha fui parar a uma coffeeshop perto da Leidseplein e fiquei lá a beber um Chocomel. Grandes nuvens de fumo saíam de todos os lados. Pequenas fábricas de eternidade passavam os vulcões pulmonares e projectavam-se no vazio da sala fechada pelo tecto. Pedi uma abrótea com maionese de toranja. As pessoas que não conversavam faziam puzzles ou liam o jornal. Fui ao balcão e a meio a abrótea fugiu pela porta fora. Quando voltei estava sentada na mesa a escritora Patrícia Reis com uma ampulheta na mão. Tinha uma cara linda e podia sem custo fumar á chuva. Lá fora o duro padrão do céu augurava uma crucificação à Gauguin. Num pé a escritora tinha um soco holandês e no outro uma sandália árabe. Estava acompanhada por um cogumelo e um homem mais velho: Boa noite, sou o senhor Ayahuasca- apresentou-se ele. Foram vocês que assustaram a abrótea. – Não, respondeu ela com a elegância egoísta das beldades. Resolvemos ocupar a mesa antes que a maionese fugisse concluiu a escritora.

Todo o cenário desaparece e fico sozinho com Patrícia Reis. Entro em automático.

No livro tudo me faz lembrar a sequência da plantação francesa no Apocalipse Now. Os personagens parecem fantasmas ou zombies ou golems. A prostituta não está calibrada á medida do escritor. A jornalista, que teima em não sarar migra como um pequeno almoço de mesa em mesa como uma alma danada num banquete de bruxas. O romance tem um alvo específico, mas na sua construção age como um sniper oportunista. A maravilha do mundo são as pequenas confusões, as enguias eléctricas e aleatórias da natureza humana. A abrotea e a maionese de toranja são um acto falhado relativo ao efeito madeleine de Proust, o rateiro.

Patrícia Reis dá uma risada e responde - desculpe mas o meu nome é Cirano de Bergerac.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Susan Boyle (beije-a, Mr. King)



Elegante como um peru de Natal, afrontou com bravura centenas de pessoas que começaram por se rir de forma vil e abundante. Quando daquele corpo original lhe fugiu a voz, estarreceu e comoveu . Não é que venha daqui a paz ao mundo mas é um violento pontapé nas partes dos bonitinhos deste mundo extremamente feio. Solteira, nunca beijada, sozinha em casa e desempregada com um gato. E de repente vai ao Larry King. Tenho uma dúvida, no entanto, será que ela cantará pior ou melhor depois de ser beijada? De qualquer forma espero que tenha um bom primeiro beijo uma vez que esperou tanto tempo. Ou então ser beijada pelo próprio Larry King simbolicamente. Isso seria lindo e de extremo mau gosto como todas as coisas belas.

domingo, 19 de abril de 2009

Pele de mámore


Bom dia blog.

Espreito-te mas não falo contigo vai para um ano.

Foi tudo tão rápido; o curso, os escursionistas, tão deliciosamente diferentes entre si, o Mário Cláudio, as casas de banho em mármore, o jantar, as possibilidades; depois, a realidade. Tive saudades, admito.


Farto-me de viajar e no entanto não saio do sítio.

O mesmo clima pós aquecimento global. A mesma cidade invicta, vencida. O mesmo escandaloso contraste entre o que podia ser e o que é. O mesmo desânimo nas paredes, nos bichos e nos homens. Ainda a tua agenda quotidiana, a minha urgência. Que se foda a tua agenda quotidiana. Eu vou mas é tentar salvar a pele agora que não a tenho. Eu vou mas é fazer a barba.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Parkour Fúnebre



POR ENTRE OS MÁRMORES

O portão está aberto, entra. Sobe as primeiras escadas,
Um curto lanço, dois pequenos degraus. Segue depois pelo
carreiro de terra batida, apenas alguns passos até olhares
à esquerda, caminhares por entre os mármores. Desvia-te


das flores, não pises as vassouras que as viúvas deixam de
sábado a sábado. Vira agora para a direita e olha. Vê bem o retrato
a sépia pousado ao vento, debruça-te sobre a campa, reza.
E deixa-te com as flores, o portão sempre fechado.

Biologia do Homem, Jorge Reis-Sá, ed. Quasi, 2004


Em Por Entre os Mármores Reis-Sá ensaia a primeira tentativa do que eu chamo o poema-parkour ou se preferirem o poema –orientação. Outros nomes para este poema avançado seriam por exemplo Parkour Enérgico do Cangalheiro Saltitante ou ainda Parkour de Finados. Em poucas palavras, o exercício físico mistura-se com um revivalismo fúnebre. No próximo post debruçar-me-ei sobre o enigmático poema Dharma & Greg.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Avariação a Jorge-Reis-Sá


PELA MANHÃ O PÃO

Pela manhã o pão ou as bolachas com o leite
fundas na chávena. Tu e o jornal no
alçado, um trago de sumo sempre que
te via os passos, como se corresse, te seguisse.

O jornal ainda está na pasta como o deixaste
uma última vez, já os óculos o acompanham.

Mas o pão ainda se encontra à entrada da boca.

Biologia do Homem, Jorge-Reis-Sá, ed. Quasi, 2004


PELA MANHA O MOLETE

Pela manha o molete ou as cookies com o bagaço
sopas na xícara. Tu e o papagaio
á tiracolo, um sorver da zurrapa sempre que
te via a púbis, como se corresse, tece-me os guizos.

O papagaio ainda está empastado como o deixaste
uma penúltima vez, já as lunetas vão atrás dele.

Mas o molete ainda se encontra à entrada da boca
(e assim não tenho sítio para meter isto!)

Biologia do Cro-Magnon, Alien Taco, 2009

Na senda dos aprendizes do Renascimento ousei imitar um poeta Jorge –Reis Sá, aproveitando a maneira subtil como ele carameliza as palavras para redigir uma variação bruta e simplista que representa apenas o os meus sentimentos pueris e as idiossincrasias do meu humilde e profano dia-a-dia .Comecei a ler a Biologia do Homem e logo aos primeiros poemas me apercebi estar perante uma coisa fora do vulgar. Os poemas são tão maus que é minha convicção que este, o poeta, não reconheceria um bom poema mesmo que ele aparecesse vestido de poema com um letreiro a dizer sou um poema e a seguir o mordesse numa nalga. Estou com curiosidade de conhecer este poeta invulgarmente mau. E dar um abraço merecido porque eu tal como ele tenho instintos anti-poéticos, embora, felizmente para toda a gente, eu não escreva poesia. Todavia fiquei tocado por este livro porque em termos técnicos e viscerais é do pior que tenho lido. O poema Pela Manha o Molete é o corolário dessa experiência poético tenebrosa proporcionada pelo poeta Jorge Reis-Sá.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Se estiverem por aí


Escrevi e interpreto o espectáculo que terá a sua estreia amanhã dia 27 de Março - Dia Mundial do Teatro.
Muito do que pude fruir no atelier de escrita dos Sentidos, vem desaguar a este projecto.
Se estiverem por aí, se acharem que vale a pena, venham até á Póvoa de Varzim, eu estarei por aqui para vos dar a beber este momento.

sexta-feira, 20 de março de 2009

segunda-feira, 16 de março de 2009

Nick Hick



Swamp People

For those who dwell in the swamp
There will be nothing but wheels
Wheels of shitty misfortune and flesh eating lotus
Tiny figures in the fast track
Lost soldiers turning their tongs
Sober garments stained by hunger.

Nicholas Hick

Nicholas Hick – Nasceu na Tasmânia em 1961. Cruzei-me com ele no sétimo encontro dos Criadores Invisíveis realizado em Torresmos de Latrão. Este poema pertence a um dos seus primeiros livros: Dundee Dandy. O mote de Nick Hick é “a existência é o que é, embora não exista.”

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Lago de canja selvagem



Ingredientes

Uma floresta com patos e gansos e lebres
Um pequeno lago sem peixes
Massinha de canja
Ervas aromáticas
Tom Jones ou Motorhead

Derrubam-se as árvores e colocam-se em gigantescas fogueiras para aquecerem caçoilas de cobre. Matam-se todos os patos e gansos e lebres da floresta. Tira-se toda a água do lago e distribui-se pelos cozedouros. Os animais esfolados e depenados põem-se a ferver para soltarem a sua gordurinha. Juntam-se as massinhas. Quando estiverem cozidos adicionam-se as ervas silvestres. No fim de saciados os convivas, seguir-se-á um concerto de Tom Jones ou Motorhead.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Manifesto Estúpido



1- Toda a realidade é uma construção. O real nunca se esboroa. É como uma lampreia a sugar o clítoris da vida: o minete eterno.
2- A doença da civilização é a procura dum significado total que não existe e provavelmente nunca existiu.
3- O melhor da vida é respirar. Já o pior é o seu inverso.
4- Quando um cão saliva ao ouvir uma campainha, quando o elefante toca o sino, isso quer dizer que tanto o cão como o elefante estão aptos a escrever.
5- Os papagaios não sabem o que dizem , mas não aprendem sozinhos.
6- Deixar cair as cuecas pode ser um risco: existem espécies marotas que gostam de sítios quentes e húmidos.
7- O autor deste manifesto está muito longe da realidade. Por não saber onde está remete-o a si leitor(a) para o primeiro artigo.



Nota: como tpc levarei uma receita de arroz de lampreia que está na minha família desde a Idade do Bronze.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Um Mundo Catita - As minhas coisas favoritas

O sweet and pretty speaking eyes,
where Venus, love, and pleasure lies.
Petronius (roman smart fucker)

domingo, 4 de janeiro de 2009

Natal? Manuel Sérgio

Porque só agora li o desafio, fui procurar um poema que decorei na escola com nove anos e do qual ainda me lembrava em parte.

Natal?


Enquanto a chuva

Escorrer da minha vidraça

E furar o telhado

Daquele farrapo de homem que além passa

Enquanto o pão

Não entrar com a Justiça

Lado a lado

Mão a mão

Nem Jesus vem

Andar pelos caminhos onde os outros vão

Um dia

Quando for Natal

(E já não for Dezembro)

E o mundo for o espaço

Onde cabe

Um só abraço

Então

Jesus virá

E será

À flor de tudo

O RedentorUniversal

(Quando o Homem quiser

Será Natal)

Manuel Sérgio

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

À procura do tempo fodido



Humilhação pré-puberdade

Eu devia ter á volta de oito anos. Andava em folias com o resto dos miúdos no pátio da escola. Estávamos a jogar ás escondidas. Procurei esconder-me atrás duma porta que dava acesso a uma casa de banho decrépita que na altura se encontrava em obras. Infelizmente não fui o único a procurar refúgio na recatada cagadeira que ficava por detrás da porta meia coberta por uma bela buganvília. Pedro, o Bucha, um rapaz com problemas de peso tinha escolhido esconder-se lá tal como eu. As carnes fartas do Bucha em plena correria empurraram a porta e fizeram-me aterrar na sanita onde fiquei preso. O Bucha ao reparar que eu e a retrete éramos agora uma unidade correu por ajuda. Por esta altura, enterrado na cerâmica comecei a vislumbrar os olhinhos dos outros miúdos como penas de pavão incrustadas na ramagem da buganvília. Estavam entre o riso e a surpresa num ambiente de pré-galhofa generalizada. Veio uma freira que me passou uma mão pela cabeça e passado um bocado voltou com um brutamontes que desfez com um maço o enlace carne-loiça. Encaixei dois cortes no cu e um ódio aturdido pelo Bucha. No entanto se posso apontar o pináculo da humilhação foi passar, meio a mancar pela turba ululante com as calças ensanguentadas e restos de merda que datavam de antes das obras. Enquanto carregava o meu pequeno e fétido corpo pelo pátio compreendi, e lembro-me disso distintamente, compreendi que teria sido muito pior se tivesse caído de queixo ou enfiado lá a cabeça. Outros teriam provavelmente tirado ilações sobre o universo. Eu não, eu estava só na merda.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

A Ilha dos Corações Partidos - A Outra Parte

Tinha ficado três dias e três noites sentada junto às marés. recebia a água na ponta dos dedos dos pés como alimento. Sempre fora persistente, e também esquiva às tarefas diárias impostas pelos ilhéus. Recebia a água e vertia os olhos na imensidão, certa de que o momento estava para chegar. Na sua curta vida aquela era a única praia que conhecia, tinha nascido ali, guardava no peito a herança de todos os ilhéu, um coração que mal brotara, já de si vinha despedaçado. Suspirava junto às árvores, e sonhava... como sonhava!... Sempre o mesmo e colorido sonho, a de um homem só com um olho, de mãos macias e rosto encovado, que por entre os rochedos, por entre as águas e por entre a multidão chegava finalmente à ilha para colar todos os pedaços da sua herança despedaçada.
Ao fim dos três dias, avista ao longe a multidão que se agita. Surgira da bruma o rosto mais belo que alguma vez vira. Ao fim de algum tempo, o rosto e o seu corpo de homem afastam-se da multidão, caminhando para ela. O seu coração fragmentado sentiu-se a tremer, e as suas pernas receberam ordem de despejo. Correu a esconder-se no mato. Deixou que os olhos não perdessem a figura de vista, bebeu-lhe o corpo, bebeu-lhe o passo, bebeu-lhe o olho, aquele único e grande, que os seus sonhos lhe tinham mostrado entre bocejos e suspiros.
Ali se deixou, tremendo e chorando por esse sonho acontecido.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A Ilha dos corações partidos III

A maré começou a vazar retirando o manto marinho ao homem no cimo da rocha. O zarolho ziguezagueou fausto de exausto e os locais apressaram-se a trazê-lo para a caverna. Era um grande buraco na rocha na linha da praia com a selva que lhes dava abrigo. Trouxeram-no para cima de uma fogueira e deram-lhe porco com ananás numa folha de árvore. Depois do repasto houve muita galhofa e até algum despudor quando os locais, numa brincadeira de crianças grandes, tentavam acertar sucessivamente com puré de raízes no buraco onde havia habitado o olho do zarolho. No fim o visitante e o que parecia ser o líder da comunidade, um velhote, deslocaram-se para aliviarem a tripa e segundo o velho para fortalecer a terra das ilhas.
- Cagamos sempre aqui. Cada um tem a sua área e assim ajuda-se o lustroso solo. O zarolho acenou. Depois voltaram. Na caverna já todos tinham adormecido, mas o zarolho e o velho continuaram a conversar.
- As portas para o lado de lá fecharam-se. Não há mais ninguém. – Confessou o homem ao velho sem ponta de emoção.
- Bem, então precisas de um sítio para te instalares. Escolhe um pedaço da caverna e depois veremos para que tens jeito.
- Não pretendo ficar. Quero seguir pela selva até ao Pico dos Três Vértices e encontrar as mulheres do Milho Estoirado.
- As mulheres do alto não gostam de companhia – Retorquiu o velho.
- Nem eu. Procuro só uma delas. Sonhei com ela quando estava no outro lado. Tem uma carinha linda e olhos grandes e azuis. Além disso pula e dança. Eu chamo-lhe Cintilante Luz Que Brilha Sem Cessar Na Única Pupila do Meu Olhar.
- É um nome um bocado grande – Disse o velho, jocoso.
- É uma grande mulher – Retorquiu o zarolho.
- E se ela não sonhou contigo? – Perguntou o velho.
- Bem, nesse caso volto para junto de vocês e mais dia, menos dia quando a maré estiver cheia deito-me na rocha em vez de me sentar.
A fogueira estava a apagar-se e o ancião levou o visitante a um recanto de pedra e convidou-o a repousar. O zarolho fechou o olho e adormeceu. O velhote esgueirou-se para o seu canto da caverna e fez vibrar uma rabeca enquanto entoava uma frase vezes sem conta.

sábado, 22 de novembro de 2008

Theme song to Fantasy Island

este sonzinho fica aqui até eu decidir o que fazer ao zarolho (lol). Redonda obrigado pelas tuas palavras e quando quiseres reentrar fá-lo.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A Ilha dos corações partidos II

A multidão vislumbrou a figura que emergia da bruma pouco antes de o abraçar. Estava coberto de cal branco, o que parecia ser sangue seco e areia. Tinha ornamentações escarificadas na face. Um olho negro como o carvão contrastava com a caverna de cicatrizes onde o outro olho luzia por estar ausente.
Depois dos cumprimentos e abraços o zarolho afastou-se da multidão. Passeou pela orla da praia e foi-se sentar numa rocha a olhar para o mar. O sol já não se aguentava, estava a ser empurrado para o fundo. Entardecia e a multidão foi à sua vida. O homem levantou-se e deu um mergulho no mar, aproveitando para urinar em recato. Depois de jantarem os ilhéus vieram para perto do zarolho que continuava pesado como uma estátua em cima da pedra. A maré estava a subir, sentaram-se numa fila paralela às últimas areias lodosas. À medida que a maré subia a figura do zarolho ficava mais tapada e bastante mais lúdica para os locais que nunca tinham visto nada assim.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A ilha dos corações partidos

Há muitos anos atrás, quando a natureza confiava no homem e facilmente lhe oferecia abrigo e comida, todos apenas se ocupavam na tarefa de ser felizes. Alguns seguiam os seus próprios prazeres, outros resolviam apaixonar-se e viver em função de um outro que podia ser o mesmo ou variar simultânea ou sucessivamente. Havia no entanto uns poucos que afirmavam ter o coração despedaçado. Numa languidez e melancolia pecaminosa ou numa intranquilidade nervosa aborreciam os demais que não os compreendiam. Não percebiam porque não seguiam o seu exemplo e ao invés criavam problemas que não existiam. Foi então resolvido que esses poucos deveriam ser exilados numa ilha que não ficava longe, mas cujo acesso difícil era somente possível em alguns dias do ano, quando o vento acalmava e a maré subia, permitindo que os pequenos barcos que lá tentavam ir, não se despedaçassem nos rochedos. Dito e feito, mal era observado o problema e depois de deixarem passar uns poucos dias para terem a certeza que estava em causa o mal condenado e não uma dor de barriga, eram remetidos para a ilha, sem apelo nem agravo. Esta até então desabitada passou a ser conhecida pela Ilha dos corações partidos. Enquanto as condições não o permitiam, eram os futuros exilados confinados num campo limitado para o seu mal não se propagar ou contagiar qualquer incauto. Ora, não obstante todos os cuidados, o número de afectados aumentava de dia para dia e alguns até pareciam ansiar pela condenação ao exílio. Entre os imunes estavam os mais velhos, mais avisados e experientes. Até que um dia repararam que entre eles já não cresciam crianças. Temeram então o pior e julgaram-se os últimos homens da terra porque os da ilha apenas poderiam ter morrido de inanição. Quando apenas restava um, meio enlouquecido pela solidão, resolveu ir até à Ilha para aí se encontrar com a sua morte. Esperou pelo vento e maré propícios e com dificuldade contornou os rochedos. Eis que quando se aproximava julgou ser vítima de uma alucinação porque ouvia risos. Quando finalmente chegou à praia foi rodeado por crianças, jovens, velhos, homens e mulheres, aparentemente nem infelizes ou felizes, contudo vivos.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Bastos caracóis e o casulo Ulissiponense



Ah, caralho! Devia ter pedido um t6 agora estou aqui na província e não posso ir ás tascas com homens a sério comer caracóis e pipis a sério. Sinto-me como um cão velhadas entre flores de funerária. As saudades que eu já tinha da minha neo-realista casinha. O meu retiro de guerreiro arrematado pela soberba doutros homens que não eu. Oh, piedosa deusa da igualdade guia-me pelas barricadas do obscurantismo e dá-me uma morada com vista para o Tagus e uma tagus para a mão. E tremoços a sério com cafés com mesas a sério. Aqui na província tudo é a brincar e eu estou velho para folguedos. Quero é caracóis, que tal como eu carregam o fardo duma casa ás costas. Sim, quero caracóis verdadeiros daqueles bem anafados. Quero caracóis que têm como eu que ter um telhado para a sua carne.
Sim, sou eu: Bastos, o locatário

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Herberto Elder é Gimli (parte I)






Herberto Elder, o génio mórmon, acaba de publicar a faca não corta o logro. O genial e obscuro bardo terá na verdade feito parte do elenco do Senhor dos Anéis durante o qual foi cortando filete após filete depois de alcatra mais alcatra e até algum lombo para perfazer os poemas encarniçados da excelsa obra prima a faca não corta o logro. No deslumbrante cenário da Nova Zelândia Elder terá vislumbrado os cumes da apneia e obrado este glorioso conjunto de palavras enquanto dizia umas linhas no cenário do épico. O seu próximo divino volume de imagens e mono mania terá como título Um anão para a Eternidade.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Encontrei um texto muito especial sobre missões e sobre podermos ajudar como padrinhos (ou madrinhas) no blog de A Senhora Sócrates, aqui.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Bater no Ceguinho



A ilha de Lanzarote foi invadida por uma turba de ceguinhos. Stevie Wonder o Mr-T do A-team (que tem uma tia velhota amblíope), e milhares de cegos anónimos povoam os hotéis da pacifica ilha com toques de bengala e o ocasional poio de cão –guia. Alguns correctores cegos de Wall Street fizeram um protesto performance atirando notas de monopólio. Tudo devido á estreia do filme “Cegueira do Velhão”. Na opinião de algumas organizações de cegos americanas o filme transforma os cegos numa multidão de cegos velhacos que invadem o planeta de forma muito suculenta. Saramago que se encontra graças a Deus já recuperado duma maleita revelou-se pouco incomodado tendo dito á imprensa espanhola que Pilar del Rio teve um sonho com Jorge Luís Borges a cozinhar uma sobremesa de avelã com manga e onde o mesmo dissertou sobre bolinhas de pão e pescada cozida. Segundo Pilar isto quer dizer que tudo isto é passageiro tudo isto é fado ou na pior das hipóteses zarzuela. Saramago disse ainda que pode haver cegos estúpidos o que aqueceu os ânimos. É verdade que o argumento de peso de Saramago é de que os cegos não viram o filme. Mas o que se perfila perante os atónitos cidadãos de Lanzarote é um cerco bem ao jeito do de Lisboa tão sabiamente recordado em literatura pelo Novela da literatura. E não é piada está convocada na Catalunha uma manifestação de cegos na zona das loiças do corte inglês onde se lerão poemas pró-cegueira. As últimas noticias dizem que os Blind Boys of Alabama acabam de comprar casa ao lado da mansão do prémio Novela. Cegos do mundo uni-vos não ides ver este filme. Abaixo a alegoria!


Zé Carlos Bordalesa, invisual, enviado do Tanagrasa a Lanzarote