sábado, 29 de dezembro de 2007

Diário

O Diário de Miguel Torga desafia os seus leitores de várias formas. Além do prazer das palavras que descrevem os dias do escritor, obriga-nos à tarefa poética de rasgar o bordo de cada página, toscamente colada à anterior, para alcançarmos a continuação dos parágrafos inacabados. Cada nova página é um desafio de leitura e de perícia com a tesoura.
Achei o texto natalício (talvez seja pouco natalício) de Torga no dia 24 de Dezembro de 1968 interessante, resolvi partilhá-lo.
"S. Martinho de Anta, 24 de Dezembro de 1968 - As rabanadas comidas, a família recolhida, a árvore de Natal apagada, e eu aqui à lareira, debruçado sobre as brasas da murra sacramental, a passar mais uma vez as velhas contas do meu rosário de perplexidades. Como é que o Pai mandou o Filho tão tarde salvar o mundo? Quando já tantos milhões de homens se tinham perdido e a estratificação de alguns dos pecados mortais era irremediável? Mistérios divinos - a que a descida aos infernos emprestaria a necessária ambiguidade - ou, mais simplesmente, o Advento não aconteceu por altos desígnios, mas apenas por humana vontade? Há duas duas passagens nos Evangelhos que sempre me perturbaram. Numa, Jesus ensina: "Sede perfeitos como também vosso Pai celeste é perfeito". Na outra, mais preciso ainda, alude ao Salmo que diz: "Sois deuses". E, quando leio os versículos, parece-me estar a receber ordens perentórias de assumir a divindade. Em ambos os casos, o homem tem a sua sobrenaturalidade nas mãos. Simplicíssima, afinal, a entrada no céu: em vez de se bater timoratamente à porta, empurrá-la. Foi, de resto, o que fez Jacob quando lutou com o Anjo: "Não te largo enquanto me não abençoares". E se Cristo tivesse feito o mesmo? Se, convictamente, tivesse proclamado que chegara enviado pelo Altíssimo? Que outra coisa poderia fazer o Altíssimo, perante a violência de semelhante certeza, senão resignar-se e dizer que sim?

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Pequena experiência para me iniciar num blogue colectivo

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"Talvez seja verdade que não existimos enquanto não houver quem veja que nós existimos, que não falamos enquanto não houver quem ouça o que estamos a dizer, no fundo, que não estamos completamente vivos enquanto não formos amados."
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Retirado do livro que estou a ler agora, "Ensaios de Amor" de Alain de Botton, página 112.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Olá! a todos
Foi num jantar de repetentes... Com polvo como pano de fundo, por vinho bem regado e muito bem humorado; que a nossa juíza - Boa, teve a brilhante ideia deste Blog SA ( sem benefícios fiscais).
Espera-se dele? Palco, tela, pauta, ecrã... Registo em que a palavra que passa de boca em boca é reinventada quando lida neste ponto de encontro.
Afinal é a falar que a gente se entende e é na escrita que se compreende!
Que sejam muitos os textos, de todas as cores, musicalidades e diferentes interpretações. Para que antes de se apagarem na memória, ganhem voz em nós através da escrita.
Boa semana
Tanagra

sábado, 8 de dezembro de 2007

O Escritor


Yashima Khadra é o pseudónimo sob o qual escreve Mohammed Moulessehoul. Moulessehoul nasceu em Orão em 1955 e foi, até há pouco tempo, militar de carreira do exército Argelino. A sua escrita percorre os conflitos recentes no Médio Oriente com uma lucidez e um equilibrio invulgares, é assim em O Atentado e em As Sirenes de Bagdad, ambos publicado em português pela Bizâncio. O seu pseudónimo feminino permitiu-lhe escapar à censura militar, em O Escritor, Moulessehoul revela a sua identidade, conta a sua história, descrevendo-a como a fatalidade de ser escritor:
"O sofrimento não me aterrava; despertava-me, fazia-me tomar consciência da minha singularidade; eu era aquele que sabia ver, que estava atento à dor dos camaradas. E essa coisa, que se fortalecia em mim, habitava-me justamente para me assistir nessa vocação. Não foi senão ao ler O Pequeno Polegar que a descarga se abateu sobre mim, como uma revelação que bate à porta. Era aquele o dom divino: o verbo. Nascera para escrever! Ao abrir o belo livro, ao percorrer as suas páginas de esplêndidas ilustrações, plenas de fascínio, fiquei irremediávelmente apanhado: escrever livros. Devorei outros contos com um apetite insaciável: Branca de Neve, O Capuchinho Vermelho, A Bela Adormecida, as Fábulas de La Fontaine. Era feérico. Mas o meu fascínio, o verdadeiro, não era nem pelas histórias nem pelas personagens ou pelo talento fantástico dos desenhadores. Só o descobri ao iniciar-me, eu próprio, na escrita: estava fascinado pelas palavras... aquela junção de caracteres mortos que, entre uma maiúscula e um ponto, ganhavam de repente vida, tornavam-se frases, conjuntos, aquiriam força e espírito. Soube de imediato aquilo que mais queria no mundo: uma pena ao serviço da literatura, essa sublime bondade humana que não tem igual senão na sua vulnerabilidade; essa bondade suprema que continua a ser, ainda hoje, a última fortificação da nossa salvação, o último bastião contra a animalidade, e que, se alguma vez viesse a ceder, sepultaria sob os seus escombros todos os sóis do mundo, e então, boa-noite..."