domingo, 17 de fevereiro de 2008

O Rosto

A propósito do tema da morte, vezeiro nas nossas aulas de escrita, principalmente nas últimas, resolvi partilhar o seguinte texto do Diário de Torga, de que, como já perceberam, gosto muitíssimo.
"Coimbra, 20 de Março de 1971 - Nunca mais poderei esquecer aquele grito de terror esgazeado: - Ela aí vem! Ela aí vem! É agora! Ainda injectei adrenalina no coração, massagei, fiz respiração boca a boca. Nada. O homem estava irremediavelmente morto. Era um pesado cadáver a arrefecer e a enrijecer progressivamente, como o de tantos a que não conseguira valer pela vida fora. E só me restava esquecer o incidente e regressar aos papéis, até porque o doente estava à espera de ser atendido por outro colega, e a minha intervenção tinha sido puramente casual. Mas havia o facto inquietante da visão e do pânico. O alarme aterrado diante do espectro que mais ninguém descortinava. E continuo sem poder pensar noutra coisa, impressionado, aflito, com as palavras do moribundo metidas no ouvido. O que é que o sujeito teria visto? Como será o rosto da morte?"

2 comentários:

redonda disse...

Já estou a pensar em comprar o livro!

Pedro Brandão disse...

É uma excelente leitura, Torga é um visionário. As suas palavras seriam visionárias ditas hoje, o que ilustra bem a sua visão, pois foram escritas há 30 anos (por exemplo estas passagem que tenho citado). Quanto ao livro são pelo menos 16 volumes...